
Vice Presidente dos EUA Kamala Harris
Washington, EUA, 29 Out (AIM)- Kamala Harris, candidata dos democratas à Casa Branca, “não aproveitou a oportunidade de fazer uma abertura aos eleitores árabes e isso pode ser um verdadeiro problema para ela”, segundo académico e analistas políticos.
A poucos dias das presidenciais norte-americanas (faltam 7 dias), não restam dúvidas sobre o impacto que as guerras no Médio Oriente entre Israel e Hamas em Gaza, entre Israel e Hezbollah ou Hizbollah no Líbano, bem como a tensão com o Irão, poderão ter nas urnas. Também a guerra na Ucrânia está a influenciar a campanha eleitoral nos EUA.
Segunda o Ministério da Saúde em Gaza, controlado pelo Hamas, o número de mortos na guerra, que já dura um ano, ultrapassa 42 mil.
Pelo menos é isso que mostram as sondagens, as movimentações no terreno de campanha e (até) a decisão do dono do LA Times de não apoiar formalmente nenhum candidato – e é Donald Trump, candidato republicano, quem mais tem a ganhar com isso, segundo a CNN Portugal.
Faltavam cerca de dois meses e meio para as presidenciais norte-americanas quando uma sondagem pareceu confirmar o que vários analistas foram sugerindo ao longo da campanha eleitoral: a imposição de um embargo de armas a Israel ou, em vez disso, um acordo de cessar-fogo para a Faixa de Gaza, ajudaria Kamala Harris a obter mais votos nas urnas.
O inquérito de opinião do YouGov para o Instituto para a Compreensão do Médio Oriente foi conduzido em meados de Agosto junto de eleitores da Pensilvânia, do Arizona e da Geórgia – três dos sete estados mais decisivos nestas eleições – e foi apenas um de vários a indicar o potencial impacto que a guerra de Israel em Gaza, entretanto alargada a outras frentes, poderá ter na votação de 5 de Novembro. (Veja-se o caso da Pensilvânia, aquele que dos sete representa mais votos no Colégio Eleitoral, em que 0% (zero por cento) dos inquiridos disse que seria “menos provável” votar nos democratas se a actual administração alcançasse um desses feitos.)
Já há um mês, o Movimento Nacional de Não-Comprometidos, que teve bastante impacto durante as primárias quando ainda era o presidente Joe Biden o candidato democrata à Casa Branca, recusou-se a apoiar formalmente a candidatura de Harris, ainda que tenha deixado alertas sobre a potencial eleição do republicano Donald Trump.
E no início da semana passada, uma nova sondagem veio mostrar como a população árabe-americana pode vir a contribuir para a vitória de Trump – colocando o republicano dois pontos percentuais à frente da rival democrata entre esse grupo demográfico num outro inquérito do YouGov para o site Arab News.
“Alguns especialistas tinham esperança de que Harris adoptasse uma abordagem mais equilibrada do que o presidente Biden quanto à guerra em Gaza, mas ela não se desviou das políticas da atual administração de forma significativa”, assume Delaney Simon, analista sénior do programa EUA do International Crisis Group, em entrevista à CNN Portugal.
Nas semanas entre a desistência de Biden em Julho e a Convenção Nacional Democrata de Agosto, a actual vice-presidente “teve a oportunidade de mostrar uma abertura aos eleitores árabes” e até de “incluir uma voz palestiniana como oradora” durante o encontro em que a sua candidatura foi formalizada – mas como ressalta a especialista em política externa dos EUA focada em zonas de conflito, Harris “não a aproveitou”. E isso poderá ter impacto nas eleições, em particular nos chamados estados-pêndulo, alguns dos quais albergam grandes populações de ascendência árabe.
“Este pode ser um verdadeiro problema para Harris no Michigan, um estado-chave onde há um número significativo de eleitores árabes-americanos”, exemplifica Simon, falando de um estado onde “o ex-presidente Trump está a cortejar esses eleitores e a investir dinheiro em anúncios que sugerem que Harris tem lidado mal com a política do Médio Oriente”.
As contradições de Kamala Harris…
Foi precisamente num subúrbio do Michigan, perto daquela que, no ano passado, se tornou a primeira cidade de maioria árabe-americana no país, Dearborn, que Trump apontou aos eleitores árabes e muçulmanos num comício de campanha no último sábado, no qual referiu que são eles que “podem virar as eleições para um lado ou para o outro”.
Para o imã Belal Alzuhairi, um dos principais líderes da comunidade árabe-muçulmana do Michigan presentes no encontro, Trump é o candidato da paz e aqueles que o seguem vão votar nele por isso. “Enquanto muçulmanos, apoiamos o presidente Trump porque ele promete a paz, ele promete a paz e não a guerra”, disse Alzuhairi. “Apoiamos Donald Trump porque ele prometeu acabar com a guerra no Médio Oriente e na Ucrânia.”
Os relatos surgiram dias depois de uma notícia avançada pelo “Times of Israel” que também joga contra a candidata democrata, a dar conta de que elementos da sua campanha, incluindo o marido da vice-presidente, Doug Emhoff, garantiram a eleitores judeus do Michigan que a carta enviada pela administração Biden-Harris a Israel – na qual avisava que, sem a entrada de ajuda humanitária em Gaza, os EUA poderão suspender o envio de armamento ao aliado – foi apenas um “gesto político” que “não reflecte qualquer mudança” nas políticas do partido para o Médio Oriente.
Isto coincidiu com a divulgação de dados actualizados pelo FiveThirtyEight a mostrar que a vantagem que Harris chegou a deter sobre Trump em alguns dos estados-chave, incluindo no Michigan, desapareceu, e que o republicano está agora empatado com a rival em cinco deles e ligeiramente à frente dela noutros dois, Geórgia e Carolina do Norte.
Além disso, coincidiu também com a decisão do LA Times de não apoiar formalmente qualquer dos candidatos pela primeira vez em décadas – uma decisão que, segundo a filha de Patrick Soon-Shiong, dono do jornal californiano, foi tomada por causa da postura de Harris quanto à guerra na Faixa de Gaza.
Para alguns, estas alterações, por ínfimas que sejam, reflectem o falhanço de Harris em distanciar-se de Biden quanto ao Médio Oriente – isto quando, em Junho, ainda o presidente era recandidato ao cargo, um inquérito de opinião para a CBS News mostrou que 61 por cento dos eleitores americanos apoiam a suspensão da transferência de armas para Israel, um número que sobe para 77 por cento entre os que se definem como democratas.
Já após a desistência de Biden, o editor de política da CNN Internacional ressaltava numa entrevista à CNN Portugal que a guerra em Gaza se afigurava como “o momento Vietname” de Harris.
“Quando Hubert Humphrey, o vice-presidente de Lyndon Johnson, lhe sucedeu como nomeado democrata às presidenciais de 1968, Humphrey seguiu muito atrás na corrida até finalmente ter rompido com as políticas de Johnson no Vietname – o que desencadeou uma derradeira vaga [de apoios] que quase o conduziu à vitória”, referiu Ron Brownstein. “Penso que os democratas consideram Gaza o tema em que Harris tem mais probabilidades de se distanciar de Biden.”
A dias da ida às urnas, essa foi a grande oportunidade perdida da democrata, apontam vários analistas. Ainda que a situação no Médio Oriente esteja longe de figurar no topo das prioridades do eleitorado norte-americano este ano, cada voto conta num plebiscito que poderá ser o mais renhido em 164 anos – e isso inclui os votos de um grupo demográfico que, antes dos ataques do 11 de setembro de 2001, tendia a votar no Partido Republicano pela partilha de valores mais conservadores, mas que após os atentados e as decisões de política externa que lhe sucederam, com George W. Bush ao leme, passou a votar tendencialmente no Partido Democrata.
Nas últimas semanas, vários media apontavam para a possibilidade de muitos americanos árabes votarem em Trump nestas eleições, incluindo eleitores cuja ascendência não está directamente ligada aos actuais conflitos em curso.
Veja-se o caso dos americano-paquistaneses, cujo maior grupo de acção política anunciou na semana passada o seu apoio formal ao candidato republicano: “Embora não estejamos de acordo com o antigo presidente em todas as questões, depois de reuniões alargadas com a sua campanha e com a campanha de Harris, acreditamos que o antigo presidente é o candidato que irá melhorar as relações entre os EUA e o Paquistão.”
Mesmo assim, há quem aguarde com expectativa a possibilidade de Harris vencer e, já presidente, demarcar-se mais das políticas do antecessor, numa altura em que a guerra de Israel em Gaza já provocou mais de 42 mil mortos desde 7 de outubro de 2023, e mais de 2.500 mortos no Líbano desde o famigerado ataque dos pagers e as incursões israelitas no país ao longo do último mês, que já levaram mais de um milhão de pessoas a fugir das suas casas.
“Embora Harris quase não se tenha desviado das políticas da actual administração em relação ao Médio Oriente, alguns especialistas têm a esperança de que, caso ganhe, seja mais enérgica em questões de Direito Internacional e de Direito Humanitário Internacional do que o presidente Biden”, refere Delaney Simon.
“É provável que o seu actual conselheiro de segurança nacional, Phil Gordon, venha a desempenhar um papel influente se ela for eleita – ele escreveu extensivamente sobre os desvarios dos Estados Unidos no Médio Oriente e provavelmente centraria uma administração Harris no ‘dia seguinte’ em Gaza e no Líbano.”
… e as contradições de Donald Trump
O foco no “dia seguinte” não esteve ausente das negociações no último ano, mas foi sendo consensual entre os analistas a elevada improbabilidade de se alcançar um cessar-fogo em Gaza antes das eleições americanas.
Como referia Simon na semana passada, “há meses que os responsáveis norte-americanos se deslocam incessantemente à região para garantir um acordo, mas ainda não se alcançou nenhum, e é altamente improvável que isso aconteça antes das presidenciais”.
A conversa com a especialista do Crisis Group coincidiu com mais uma visita de Antony Blinken, o secretário de Estado de Biden, a Israel, “a décima desde outubro do ano passado, para tentar alcançar uma cessação das hostilidades” – tal como em todas as anteriores visitas, “Blinken está a pressionar as partes a chegarem a um cessar-fogo, mas duvido que elas, especialmente Israel, mudem de rumo antes das eleições”, referiu Simon.
Em meados de Setembro, a negociadora internacional israelita Nomi Bar-Yaacov já tinha destacado essa mesma improbabilidade numa longa conversa com a CNN Portugal por alturas do 31.º aniversário dos Acordos de Oslo, firmados por Yasser Arafat e Yitzhak Rabin para concretizar a chamada solução de dois Estados (uma que, como sublinhava o New York Times na semana passada, “parece agora mais distante do que nunca”).
“Uma das razões pelas quais um cessar-fogo é improvável [antes das presidenciais dos EUA] é que Netanyahu está a tentar ajudar Trump”, dizia Bar-Yaacov – “e a melhor maneira de o ajudar é garantir que não há acordo, para que Trump possa apresentar isso como um fracasso por parte dos democratas.”
É precisamente isso que o candidato republicano tem feito, com mensagens e anúncios de campanha em que, por um lado, avisa uma parte do eleitorado que “Kamala Harris está ao lado de Israel” e, por outro, diz a outros grupos de eleitores que a rival tem “duas caras” e que está “a tentar safar-se com uma campanha a favor da Palestina”.
Contraditórias na sua natureza e conteúdo, ambas as mensagens foram produzidas pelo mesmo Comité de Acção Política (PAC) de apoio a Trump, a primeira difundida em áreas do Michigan com grandes comunidades de americanos árabes, a segunda em condados da Pensilvânia com grandes comunidades de judeus.
Reagindo aos dados agregados pelo Google, Maya Berry, directora-executiva do Instituto Árabe-Americano, sublinhou à Al-Jazeera: “Aquilo que aqui vemos é [a campanha republicana] a visar comunidades específicas – americanos árabes no Michigan, americanos judeus na Pensilvânia – com desinformação que é também, diria eu, antissemita e anti-árabe.”
Esta estratégia está alinhada com a dupla retórica de Trump sobre o Médio Oriente ao longo da campanha – em que, num comício no Wisconsin no início de Setembro, disse que “Israel estará condenado com a camarada Kamala Harris ao leme dos EUA”, semanas antes de declarar que, se perder as eleições para a democrata, “o povo judeu terá muito a ver com essa derrota”.
“Israelitas estão a contar que Trump os apoie ainda mais do que Biden”
Restam poucas dúvidas sobre a estreita ligação entre o que está a acontecer no Médio Oriente – com frentes activas de guerra em Gaza, no Líbano, no Iémen e na Síria, aos quais se juntaram “ataques retaliatórios” ao Irão no último fim de semana – e as presidenciais da próxima semana.
“Estes teatros estão em jogo contra um quarto factor: as eleições americanas”, referia a “Economist” num artigo recente. “Alguns membros da administração Biden podem esperar que um esforço de última hora para conseguir acordos de cessar-fogo antes da abertura das urnas possa impedir que o número de mortos no Médio Oriente aumente ainda mais – e, consequentemente, ajudar as perspectivas eleitorais de Kamala Harris. Mas Israel pode também ter algum incentivo para continuar a lutar: uma vitória de Trump mudaria provavelmente o cenário estratégico, dando [aos israelitas] ainda mais latitude.”
Questionada sobre o que esperar de uma segunda administração Trump, Delaney Simon defende exactamente o mesmo. “Os israelitas estão a contar que Trump apoie ainda mais Israel do que a administração Biden tem apoiado” – e se for ele o vencedor, “é provável que seja ainda mais permissivo no que diz respeito à conduta de guerra de Israel”, adianta a especialista à CNN.
“Tal como fez no seu primeiro mandato”, quando decidiu, por exemplo, mudar a embaixada dos EUA em Israel de Telavive para Jerusalém, “é provável que ignore as considerações sobre o Direito Internacional e ajude a extrema-direita de Israel a prosseguir os seus objectivos de expansão dos colonatos e mesmo de anexação da Cisjordânia ocupada”.
As questões de Direito Internacional têm estado a alimentar um crescendo de descontentamento face à conduta de Israel na região, até entre tradicionais aliados do Estado hebraico, como França.
Há alguns dias, o presidente Emmanuel Macron organizou uma conferência em Paris dedicada ao Médio Oriente na qual foram angariados 200 milhões de dólares em apoio militar e 800 milhões em ajuda humanitária ao Líbano – e na qual o chefe de Estado francês não poupou nas críticas ao governo de Benjamin Netanyahu.
(AIM)
CNN Portugal/DM