Por Custódio Cossa, da AIM
Maputo, 30 Out (AIM) – “Crianças são flores que nunca murcham”, célebre afirmação do primeiro presidente de Moçambique, o malogrado Samora Moisés Machel, ecoa na memória colectiva do país.
No entanto, a realidade actual é alarmante pois essas “flores” estão cada vez mais expostas a situações como trabalho infantil, casamentos precoces e, especialmente, à mendicidade.
É sobre essa última que a AIM se propõe a abordar.
Histórias de Sobrevivência nas Ruas
“Eu vim parar aqui na rua por causa do meu pai”, revelou Chelton Aurélio, um jovem que representa muitos outros, em Maputo, que encontraram nas ruas um novo lar.
Originário do distrito de Boane, sul de Moçambique, Aurélio diz ter fugido de casa após ser agredido várias vezes pelo pai. “Meu pai me batia por qualquer coisa, então chegou um dia em que cansei e fugi”, disse.
Apesar do desejo de retornar, o medo da violência o mantém nas ruas, onde encontrou uma nova família entre outros jovens na mesma situação.
“Eu tenho amigos em todos os cantos da cidade. Vivemos pedindo esmolas”, lamentou, enquanto lágrimas se acumulavam nos olhos.
Aurélio sabe da existência de centros de acolhimento, mas afirma que estão distantes, no bairro Zimpeto, a cerca de 25 quilómetros de onde vive.
O rapaz recorreu até aos vizinhos que o encaminharam a uma esquadra, mas a resposta não foi de todo satisfatória, pois de lá só conseguiu uma intimação ao pai que o mesmo tratou de “rasgar”.
Acrescentou que mesmo que o pai fosse detido não ficaria tranquilo uma vez que a sua saída poderia fazer “algo mais perigoso do que me bater”.
Explicou que “minha mãe faleceu, e quando a minha madrasta tenta intervir também lhe batem”.
Outro jovem, Crimildo Luís, tem uma história semelhante. Ele deixou a casa no bairro de Boquisso, em Maputo, há mais de três anos, alegadamente porque a madrasta não lhe dava alimentos. “Ela não me dava comida, então decidi viver na rua”, contou.
Embora tenha tentado voltar, a situação não mudou e, ele, se vê preso entre a necessidade de sobrevivência nas ruas e o desejo de uma vida melhor.
Nelson David, de 14 anos, fugiu temporariamente de casa por curiosidade.
“Queria conhecer a cidade”, disse ele.
Embora não enfrentasse violência, preferiu passar tempo nas ruas. “Volto para casa e levo dinheiro para ajudar”, explicou.
Por sua vez, Bernardo Mbendzane, deixou a casa da avó devido a tarefas domésticas que recaiam sobre si. “Eu saía de madrugada para buscar água, e já estava cansado disso”, afirmou, em clara referência a sua rotina desgastante.
Mesmo sabendo dos riscos, ele retornou às ruas, onde enfrenta adversidades como frio, mosquitos, violência, doenças, entre outras.
Uma Crise que Preocupa
Esses jovens são apenas alguns exemplos de uma realidade que preocupa as autoridades municipais.
Anabela Inguane, vereadora do Pelouro da Mulher, Assistência Social e Família na Cidade de Maputo, a capital moçambicana, reconhece que a mendicidade infantil está no topo das prioridades do município, por isso “estamos mapeando as crianças nas ruas e suas actividades.”
O plano de acção inclui parcerias com organizações não-governamentais e outras instituições para criar espaços onde essas crianças possam participar de actividades académicas e artísticas, visando uma futura autonomia. “Não queremos que essas crianças cresçam vulneráveis, pois amanhã poderão ser adultos dependentes e susceptíveis ao crime”, alertou Inguane.
“O que acontece é que nas ruas muitas crianças estão à procura de sustentabilidade, ficam a lavar os carros, a limpar vidros pára-brisas nos semáforos, e a pedirem dinheiro às pessoas quando passam. Essa criança que hoje está no semáforo, que limpa o vidro do carro, e em troca o automobilista lhe dá algum trocado, essa criança daqui a uns anos será um adolescente, jovem ou adulto cujos trocados não serão mais suficientes para suas necessidades de vida. Então nós não gostaríamos que as nossas crianças crescessem nessa vulnerabilidade, porque amanhã são homens”, apontou.
Dar esmolas vai contra a postura municipal da cidade de Maputo por ser um acto que “vai produzir adultos vulneráveis, dependentes e susceptíveis a prática de crimes”.
Enfatizou, por isso, a importância de não se oferecer esmolas às crianças nas ruas, por perpetuar a dependência. “Estamos buscando formas alternativas de ajuda, onde as pessoas possam contribuir directamente para centros de auxílio a crianças”.
Inguane disse que os centros de acolhimento existentes, a maioria dos quais de carácter privado, até ajudam a reduzir o número destes menores, mas a “pulga que morde a orelha” do Município são mesmo as crianças com abrigo, mas que todas as manhãs saem às ruas.
Tráfico Infantil: Um Risco Crescente
O problema da mendicidade está intimamente ligado ao tráfico infantil. Em um cenário alarmante, pelo menos 14 menores moçambicanos foram traficados para exploração laboral na África do Sul, no último ano. “Esses números são apenas a ponta do iceberg”, afirmou a magistrada Márcia Pinto, coordenadora do Grupo de Referência Nacional de Protecção à Criança.
Ela disse que a realidade do tráfico é complexa e muitas vezes invisível. “Nem sempre os números espelham a realidade no terreno, porque o tráfico de pessoas é de difícil detecção”.
A maioria das vítimas são pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade e são facilmente aliciadas com promessas de melhores condições de vida. “Essas crianças, muitas vezes, acabam em situações de exploração laboral ou sexual”, lamentou.
A conscientização da sociedade é crucial nesse contexto. “Estamos realizando campanhas para informar as pessoas sobre os riscos do tráfico. Quanto mais as pessoas souberem, mais poderão proteger a elas mesmas e suas crianças”, disse Pinto, ressaltando a importância da prevenção.
Perspectivas Futuras: Um Chamado à Acção
A AIM também procurou ouvir uma responsável social da cidade de Nelspruit, na vizinha África do Sul, sobre a questão.
“Na maioria dos casos que testemunhamos, as crianças vêm com pessoas mais velhas que prometem aos pais que elas terão uma melhor educação. Mas, quando chegam aqui, não há nada disso”, revelou Nomuzi Mkabela, responsável por um centro de acolhimento na região.
Ela destaca a necessidade de uma abordagem mais rígida para proteger crianças vulneráveis.
“Infelizmente, muitos desses filhos são abusados sexualmente, envolvidos na prostituição, e outros tipos de exploração”, anotou.
Essa realidade alarmante levanta questões sobre a eficácia das políticas de protecção à infância.
A realidade dessas crianças, como Aurélio, Crimildo, Nelson, e Bernardo, serve como lembrete urgente da necessidade de acção e compaixão numa sociedade que, muitas vezes, falha em proteger os mais vulneráveis.
A cidade de Maputo reflecte uma crise que se alastra por todo o país, exacerbada pela vulnerabilidade das famílias e pela falta de políticas eficazes.
(AIM)
CC/mz