
Lisboa, 19 Jul (AIM)- O Partido Socialista, a terceira força política na Assembleia da República (AR), o parlamento português, anunciou que vai pedir uma audição ao ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, a propósito da decisão de Portugal travar a inclusão de uma referência explícita à crise humanitária em Gaza na “Declaração de Bissau”, durante os preparativos da XV Cimeira de Chefes de Estado e de Governo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), que decorreu esta sexta-feira na Guiné-Bissau.
Também os partidos Livre, PCP, Bloco de Esquerda e PAN (Pessoas-Animais-Natureza) criticaram abertamente a decisão e enviaram questões a Paulo Rangel, exigindo que explique a posição de Portugal.
A proposta, apresentada pela sociedade civil no âmbito da reunião do conselho de segurança alimentar e nutricional da CPLP, visava condenar a instrumentalização da fome como arma de guerra, com menção directa à situação das crianças palestinianas.
Em 9 de Outubro de 2023, Israel impôs um “bloqueio total” da Faixa de Gaza, bloqueando a entrada de alimentos, água, medicamentos, combustível e electricidade. A guerra na Faixa de Gaza já provocou a morte de mais de 56 mil palestinianos.
Segundo fontes citadas pelo diário luso “Público”, Portugal defendeu uma redacção mais genérica do texto, que acabou por prevalecer: “Condena a instrumentalização da fome como método de combate em contextos de conflito, e expressa a necessidade de acesso ininterrupto, sustentável, suficiente e irrestrito a bens e serviços essenciais para os civis”. A referência específica a Gaza foi, desta forma, retirada por pressão portuguesa.
Para Vítor Ângelo, antigo secretário-geral adjunto das Nações Unidas, a atitude de Portugal é “surpreendente” e “preocupante”.
“Não se compreende de modo algum que Portugal tenha tomado esta posição. Seria importante que o Governo se explicasse. Aquilo que se passa em Gaza é um assunto de extrema actualidade e gravidade”, afirma a fonte.
O antigo diplomata interpreta a posição portuguesa como reflexo da política europeia de contenção em relação a Israel. “A política europeia tem sido relativamente tímida e pouco crítica em relação a Israel. Penso que Portugal não terá medo de Israel, mas tem certamente medo dos norte-americanos e de desagradar a grandes países europeus, como a Alemanha”, justifica.
Tiago André Lopes, especialista em relações internacionais, considera a posição portuguesa “muito difícil de justificar”. “É muito difícil de perceber. Isto não reflecte a posição de Portugal, de todo. Esta é apenas a do Ministério dos Negócios Estrangeiros. A opinião pública portuguesa é muito mais sensível neste tema”, argumenta.
O especialista aponta responsabilidades políticas directas a Paulo Rangel e associa a decisão a uma atitude excessivamente cautelosa face a Israel e aos seus aliados. “O direito à alimentação é um valor básico da União Europeia, é a garantia de condições mínimas, de uma espécie de dignidade. Esta postura demasiado curvada para com a agenda de manutenção de boas relações com Israel, numa altura em que enfrentam casos no Tribunal Penal Internacional, é absolutamente injustificável.”
Segundo Tiago André Lopes, a “incoerência” portuguesa é “gritante” quando comparada com outras posições assumidas internacionalmente. “Nós não podemos bater no peito pelos direitos humanos na Ucrânia e depois ignorar vidas no Médio Oriente. Não podemos ser monotemáticos nem mono-orientados. Na Eurovisão expulsámos rapidamente a Rússia. No futebol expulsámos rapidamente a Rússia. Mas não conseguimos fazer o mesmo com Israel, apesar da gravidade do que se passa em Gaza. Isso devia fazer o Estado português pensar muito seriamente nas posições absurdas que neste momento tem.”
Além disso, Tiago André Lopes critica o impacto de lóbis na diplomacia actual. “Há uma certa elite que tem medo de perder as ligações ao sector económico do lóbi judeu. Isso paralisa decisões e compromete a nossa coerência.”
A reunião do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional da CPLP decorreu na passada segunda (14) e terça-feira (15), subordinada ao tema “A CPLP e a Soberania Alimentar: Um Caminho para o Desenvolvimento Sustentável”. Portugal foi representado pelo embaixador na Guiné-bissau, Miguel Cruz Silvestre, e não por uma delegação enviada por Lisboa, como habitual, algo que gerou surpresa entre os presentes.
No encontro desta sexta-feira (18), a ausência dos presidentes do Brasil (Lula da Silva), de Angola (João Lourenço) e de Portugal (Marcelo Rebelo de Sousa) – que foi representado pelo ministro dos Negócios Estrangeiros – esvaziou ainda mais o impacto político do encontro.
“É a CPLP, não é um governo qualquer”, lamenta Vítor Ângelo. “A ausência da liderança portuguesa é um mau sinal.”
Como foi dito anteriormente, Portugal esteve representado na XV Cimeira da CPLP pelo ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, por acordo entre o Presidente da República e o primeiro-ministro, Luís Montenegro, segundo uma nota publicada esta quinta-feira (17) no sítio oficial da Presidência da República na Internet e consultada pela AIM, em Lisboa.
“O Presidente da República e o primeiro-ministro acordaram que a chefia da delegação portuguesa à Cimeira da CPLP, em Bissau, é assegurada pelo ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, que, aliás, já se encontra na capital da Guiné-Bissau”, lê-se na nota, na qual não é avançada uma justificação para esta decisão conjunta do chefe de Estado, Marcelo Rebelo de Sousa, e do primeiro-ministro, Luís Montenegro, que é inédita quanto à representação de Portugal desde que se realizam cimeiras da CPLP.
Fontes diplomáticas garantiram que a provável atribuição à Guiné Equatorial a presidência rotativa da CPLP entre 2027 e 2029 terá sido o motivo da ausência de Marcelo na XV Cimeira da CPLP, uma vez que há um “irritante” na relação Portugal-Guiné Equatorial.
Em Portugal, a Guiné Equatorial é acusada de violar os direitos humanos e diz-se que “Teodoro Obiang é Presidente da Guiné Equatorial há 46 anos – o chefe de Estado não monárquico em funções mais duradouro do mundo”.
(AIM)
DM