Maputo, 23 Nov (AIM) – A onda de manifestações derivadas da contestação dos resultados eleitorais, que assolam Moçambique desde 21 de Outubro do corrente ano, tem estado a condicionar, significativamente, o exercício da actividade jornalística.
Além de colocar em causa a liberdade de imprensa, denega o direito do cidadão à informação, através da média.
Segundo o Capítulo moçambicano do Instituto de Comunicação Social da Africa Austral (Misa-Moçambique), a situação é agravada pela escassez de informação oficial por parte das autoridades estatais e de alguns sinais indirectos de censura.
O Misa fez uma radiografia da difícil realidade enfrentada por jornalistas para cumprir a sua nobre missão de informar, durante as manifestações.
O documento, que inclui testemunhos dos que dia e noite lutam para trazer informação ao público, foi publicado com conhecimento do Conselho Superior de Comunicação Social (CSCS), órgão do Estado responsável, entre outros, por assegurar a independência dos meios de comunicação social no exercício dos direitos à informação e à liberdade de Imprensa.
Segundo o Misa, desde que a crise pós-eleitoral começou, este direito do jornalista tem sido violado de forma sistemática.
Com efeito, explica o Misa, “os jornalistas têm sido alvo de ataques e perseguições, tanto da parte das autoridades públicas, que não se conformam com a publicitação dos factos e querem omitir, a todo custo, a informação, assim como de pessoas envolvidas nas manifestações, ao entender que o jornalista ou a empresa de comunicação não está a reportar a seu favor”.
“Por outro lado, as manifestações limitam a liberdade de circulação, criando dificuldades, também aos jornalistas, de aceder aos seus postos de trabalho ou mesmo ao terreno, à busca da informação”, refere o Misa.
Sublinha que algumas empresas de comunicação social que operam 24 horas por dia deixaram de fazer alguns programas nocturnos em directo, porque, a partir de certa hora, a circulação é limitada.
“Até há casos de alguns órgãos que deixaram de difundir os jornais da noite em directo, optando por gravar os seus programas e difundir em diferido. Outras empresas viram-se forçadas a ajustar as suas actividades, uma vez que os trabalhos nocturnos são praticamente difíceis. A interrupção e/ou limitação dos serviços de internet, impostas pelo Governo, na segunda etapa das manifestações, também criou enormes dificuldades aos profissionais de comunicação social de prosseguir com as suas actividades, principalmente aqueles que dependem, inteiramente, das Tecnologias de Informação e Tecnologia (TICs) para difundir suas informações”, diz o Misa.
Na radiografia, publicada esta sexta-feira (21) e a que a AIM teve acesso, o Misa indica que de 21 de Outubro a esta parte vários jornalistas viram-se privados do seu material de trabalho, “ora porque foi confiscado pelas autoridades policiais ou porque foi vandalizado pelos manifestantes”.
Coutinho Macanaze repórter da TV Sucesso, uma televisão privada, disse que qualquer instabilidade afecta, de forma directa ou indirecta, o processo de recolha e divulgação de informação.
Por um lado, disse o jornalista, as autoridades públicas não gostam que os jornalistas levem informações reais em tempo oportuno para a população porque, no seu entender, instiga a violência.
A fonte disse que a Polícia acusa os jornalistas de serem instigadores da violência, por isso, trata-os de forma cruel. Por outro lado, os manifestantes querem que as informações sejam de acordo com os seus desejos. Se os manifestantes entenderem de outra maneira, o órgão passa a ser alvo.
Frisou que as partes não percebem que os jornalistas têm o dever de abordar os assuntos em todos os ângulos e ouvir todas as partes, independentemente da vontade ou dos propósitos de cada parte.
“Sofremos com as autoridades que deviam nos garantir a segurança. Também somos penalizados pelos manifestantes”, lamentou.
A fonte contou que, por várias vezes, no exercício das suas funções e devidamente identificado, inalou gás lacrimogêneo atirado de forma propositada pela Polícia, simplesmente porque não queria que os jornalistas estivessem a fazer cobertura.
As autoridades e os manifestantes não querem entender que, tal como qualquer área de actividades, o jornalismo tem regras próprias que devem ser seguidas, sob o risco de desvirtuar a realidade dos factos.
O repórter anotou que, por várias vezes, a empresa que representa viu parte do seu equipamento de trabalho danificado pelos manifestantes.
“As nossas viaturas de reportagem estão devidamente identificadas. Nós, como repórteres, também estamos identificados, mas alguns manifestantes, muitos deles sob efeito de álcool ou de drogas, não nos poupam. Atiram pedras e danificam nossos bens, limitando o exercício da nossa actividade. Algumas vezes não somos bem-vindos para a população, assim como para as autoridades”, lamentou.
O jornalista queixou-se da escassez de informação oficial, o que abre espaço para especulação e propagação de notícias incorrectas.
“Desde que as manifestações começaram e as autoridades perderam o controle sobre elas sentimos algum fechamento de fontes oficiais. As autoridades não divulgam com precisão e exactidão os números das vítimas mortais, feridos, detidos ou outras informações relevantes. E, na falta de informações oficiais, somos obrigados a recorrer a fontes alternativas, o que pode nos levar ao erro”, afirmou.
Por sua vez, Carlos Jossias, jornalista da Rádio Televisão Portuguesa (RTP – África), baseado em Maputo, contou que as manifestações estão a cimentar um espírito de ódio entre as pessoas, e os jornalistas também não escapam.
Disse que muitas vezes, os manifestantes, enfurecidos, na sua retaliação, não olham para os alvos. Assim, as pedras, garrafas e bombas caseiras lançadas pelos manifestantes não escolhem os alvos. Os jornalistas que estão na linha da frente são, também, vítimas.
Jossias disse que, durante a cobertura das manifestações, testemunhou um facto em que o delegado da Agência noticiosa Lusa foi atingido por uma pedra atirada do topo de um prédio.
Afirmou que os alvos eram os agentes da Polícia que estavam a repelir os manifestantes, mas a pedra atingiu o jornalista da Lusa que, por um milagre, não teve danos maiores porque não atingiu parte sensível do corpo. “Imagine se aquela pedra enorme, atirada pelos manifestantes, tivesse atingido a cabeça do colega. Os danos seriam maiores, até a sua vida estaria em perigo. Infelizmente, é esta realidade que encontramos no terreno”, lamentou.
Por seu turno, Abílio Maolela, coordenador do Diário Electrónico Carta de Moçambique, explicou que antes de ser jornalista é, também, cidadão que vive num bairro comum, junto de pessoas que manifestam e que precisa de acessos para chegar ao seu local de trabalho.
Segundo a fonte, ir para o local de trabalho é razão de sofrer privações que atormentam outras pessoas, como é o caso do risco da danificação de viatura ou da integridade física.
Maolela disse que cada vez que se faz à rua sente o risco de ser vítima de balas da Polícia ou de instrumentos contundentes lançados pelos manifestantes.
Devido à natureza do trabalho, que por vezes obriga a terminar a actividade laboral a altas horas da noite, no regresso também enfrenta, na via pública, barricadas e extorsões dos manifestantes.
Aliás, há uma semana, viu um dos vidros da sua viatura danificado pelos manifestantes, que atiraram pedras.
Disse que as dificuldades de mobilidade o limitam de cobrir certos eventos, o que prejudica o trabalho, isto porque alguns manifestantes não entendem a nobreza do trabalho jornalístico e agem de forma brutal.
Abílio Maolela contou também que desde que as manifestações ganharam terreno, as fontes oficiais de informação têm a tendência de se fechar cada vez mais. Não se abrem e, das poucas vezes que o fazem, escolhem os órgãos, e as empresas privadas de comunicação social são as mais prejudicadas, alegadamente porque não difundem informações a favor do Governo.
Segundo o jornalista, a escassez de informação oficial cria dificuldades à classe, visto que, muitas vezes, não têm a possibilidade de fazer o contraditório ou a confirmação dos factos.
Apontou como exemplo as discrepâncias que existem em torno do número de mortos, desde que as manifestações iniciaram.
Exemplificou que a sociedade civil apresenta seus números, as unidades sanitárias também têm seus dados, e o Governo, por sua vez, tem seus números.
Estas discrepâncias, referiu, além de induzir o jornalista para o erro, dificulta o tratamento de informação que vai para o consumo público.
Apelou ao Governo para que seja mais aberto e flexível na difusão de informação para não lançar a sociedade para o campo de especulações.
Um outro profissional, S. Matula [nome fictício], jornalista da Televisão de Moçambique (TVM-órgão público), queixou-se da intolerância e ódio que as pessoas têm para com este órgão, facto que, muitas vezes, periga a integridade física dos respectivos jornalistas e coloca em causa o património da instituição.
Explicou que, por várias vezes, foi obrigado a interromper a produção de reportagens por temer violência popular, já que os manifestantes conotam a TV pública como aliada do Governo.
“Os deveres do jornalista e das empresas de comunicação social estão definidos na Lei. Não há discriminação entre empresas públicas e privadas. Quando vamos ao terreno, usamos os mesmos métodos de recolha e difusão de informação, mas, como redacção, temos sempre a nossa linha editorial. Infelizmente, algumas pessoas não gostam da forma como descrevemos ou tratamos os assuntos, o que é normal, mas isso não pode ser um mecanismo de difusão de ódio. Lamentavelmente, sentimos isso no nosso dia-a-dia”, disse.
Matula exemplificou que uma equipa de reportagem da TVM foi impedida de recolher informação em determinados lugares e, para pressionar os jornalistas a saírem do local, os manifestantes atiraram pedras e garrafas.
Denunciou que alguns colegas são vítimas de intolerância popular nos bairros “porque repórter da televisão pública é visto como aliado do Governo”.
“Se, antes, podia sair à rua, ir a uma tasca beber uma cerveja e conversar com a vizinhança, com as manifestações a situação ficou complicada. Parte dos meus vizinhos já não diferencia o cidadão Matula do jornalista da televisão. Muitas vezes xingam-me e acusam-me de ser protector do Governo supostamente porque as informações que veiculámos não retractam a realidade dos factos, que não é a informação que o povo quer.
Segundo a fonte, são discussões que geram ânimos e emoções que, em algum momento, colocam em causa a segurança. “Por isso, para evitar o pior, fui obrigado a mudar os hábitos de vida, incrementando os níveis de segurança para mim e para a família, além de reduzir a minha circulação na zona. É triste, mas é uma realidade que vivemos desde o dia 21 de Outubro”.
“As nossas liberdades estão a ser limitadas”, lamentou.
(AIM)
mz